Revolução e história, de José Antônio Segatto
Revolução e história
José Antonio Segatto
O tema revolução(ões) burguesa(s), atualmente tratado com pouca freqüência e relevância, foi uma das questões mais discutidas nos dois últimos séculos — quase todos os grandes intelectuais, direta ou indiretamente, depararam com ele. Objeto de intensas controvérsias, quando utilizado como categoria analítica e ainda mais quando transformado em projeto político, tornou-se, de qualquer forma, um conceito fundamental para a compreensão do mundo moderno. Envolve e abarca a discussão de inúmeros problemas histórico-políticos: a especificidade das variadas vias de desenvolvimento capitalista; a relação entre sociedade civil e Estado; a instauração da democracia e da cidadania; a organização dos Estados nacionais; a constituição das classes e camadas sociais; a geração de culturas políticas e muitos outros.
1. Revolução democrático-burguesa
A noção ou categoria de revolução surge na Renascença, no século XVI. Advinda originalmente das ciências naturais, sobretudo da astronomia, passou a ser utilizada para caracterizar o movimento cíclico de rotação dos corpos celestes. Nesse sentido foi empregada por Nicolau Copérnico, em seu estudo denominado Sobre a revolução das órbitas celestes (1543). No século XVII ganhou conotação política, passando a denotar alterações, ou melhor, o retorno a um estado precedente, a uma ordem anterior que havia sido transtornada — a "Revolução Inglesa" de 1688 representaria o fim de uma era de guerra civil e de turbulências e a restauração da estabilidade monárquica. "Portanto, a palavra foi inicialmente usada não quanto àquilo que denominamos revolução que rebentou na Inglaterra, e Cromwell assumiu a primeira ditadura revolucionária, mas, ao contrário, em 1660, após a derrubada do Parlamento, e por ocasião da restauração da monarquia. Precisamente com o mesmo sentido, a palavra foi usada em 1688, quando os Stuarts foram expulsos e o poder real foi transferido para Guilherme e Maria. A Revolução Gloriosa, o acontecimento em que, muito paradoxalmente, o termo encontrou guarida definitivamente na linguagem histórica e política, não foi entendida, de forma alguma como revolução, mas como uma reintegração do poder monárquico à sua antiga glória e honradez" (Arendt, 1988, p. 34).
É a partir da Revolução Francesa de 1789 que o termo passou a ter um significado histórico-político determinado, adquirindo o caráter de mudança brusca, de ruptura drástica, súbita, convulsiva, insurrecional, concentrada num curto espaço de tempo, que subverte a antiga ordem ou "estado de coisas reinante" e constrói uma outra, radicalmente nova. Seu paradigma passaria a ser o episódio da tomada da Bastilha pelo povo de Paris, em 14 de julho de 1789, e seus desdobramentos: abolição dos privilégios e instituições feudais e absolutistas, instauração de um poder temporal e laico, introdução dos princípios da igualdade, liberdade, soberania popular, direitos do homem e do cidadão, etc. — uma revolução democrático-burguesa.
Baseando-se na experiência francesa, Marx e Engels nos anos 1848/50 formulariam análises e proposições teórico-políticas acerca da revolução democrático-burguesa como pressuposto para a revolução socialista. A revolução ocorrida na França seria vista como um caso exemplar, em que a burguesia revolucionária aliada à plebe havia realizado uma ruptura completa com o passado e destruído os últimos vestígios do feudalismo.
Tendo como referencial a Revolução Francesa, procuram desvendar a realidade histórica alemã ou o que denominam de atraso alemão — a Alemanha estaria (1848) num estágio parecido com aquele em que se encontrava a França antes de 1789. O atraso do capitalismo na Alemanha havia criado uma situação muito particular: "a burguesia alemã tinha se desenvolvido com tanta indolência, covardia e lentidão que, no momento em que se ergueu ameaçadora em face do feudalismo e do absolutismo, percebeu diante dela o proletariado ameaçador, bem como todas as frações da burguesia cujas idéias e interesses são aparentados aos do proletariado. E tinha não apenas uma classe detrás de si, diante dela toda a Europa a olhava com hostilidade. A burguesia prussiana não era, como a burguesia francesa de 1789, a classe que, frente aos representantes da antiga sociedade, da monarquia e da nobreza, encarnava toda a sociedade moderna. Ela havia decaído ao nível de uma espécie de casta, tanto hostil à coroa como ao povo, querelando contra ambos, mas indecisa contra cada adversário seu tomado singularmente, pois sempre via ambos diante ou detrás de si; estava disposta desde o início a trair o povo e ao compromisso com o representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma já pertencia à velha sociedade..." (Marx, 1987, p. 44).
Diante desta situação, em que a burguesia não estaria disposta a fazer uma aliança com o povo contra o absolutismo e a desempenhar um papel revolucionário, por temer a força do proletariado, colocava-se a impossibilidade, na Alemanha, de uma "revolução puramente burguesa e a fundação do domínio burguês, sob a forma da monarquia constitucional...". Duas alternativas eram possíveis: "contra-revolução feudal absolutista ou revolução social-republicana" (Marx, 1987, p. 66). Marx e Engels chegaram a aventar a segunda possibilidade como iminente no início de 1848: "É para a Alemanha, sobretudo, que os comunistas voltam sua atenção, porque este país se encontra às vésperas de uma revolução burguesa, destinada a concretizar-se sob as condições mais avançadas da civilização européia, com um proletariado muito mais desenvolvido do que o da Inglaterra, no século XVII, e o da França, no século XVIII, e porque a revolução burguesa na Alemanha será o prelúdio imediato de uma revolução proletária" (Marx e Engels, 1977, p. 116). Tem-se, assim, a perspectiva de uma revolução democrático-burguesa realizada abruptamente, de chofre, conduzida pelas classes e camadas mais radicais da sociedade alemã (proletariado à frente, aliado ao campesinato e pequena burguesia). E mais, coloca-se a possibilidade de a revolução burguesa se fazer seguir pela revolução proletária, como dois momentos de um mesmo processo ininterrupto, ou de o desencadeamento da revolução burguesa se desdobrar, em seguida e em continuidade, em revolução socialista — uma revolução permanente.
Estas teses e concepções seriam retomadas e reelaboradas pelos marxistas russos no início do século XX e teriam grande incidência no debate e na prática política, tanto na Rússia daqueles anos, como em muitos outros países posteriormente. Seriam mesmo universalizadas e polarizariam o debate na esquerda mundial, através da Internacional Comunista. As diferentes concepções presentes neste debate seriam referenciadas nas análises de Marx e Engels sobre a Alemanha e em suas compreensões da Revolução Francesa, e objetivavam delinear um programa de transformação da sociedade russa — um programa que permitisse a superação de uma revolução burguesa e um desenvolvimento capitalista realizado pela aliança da burguesia com a aristocracia e o Estado czarista; o que significaria a continuidade do legado autocrático ou do caminho prussiano. Tornava-se necessário encontrar uma saída democrática, mais favorável ao proletariado e aos camponeses, ou seja, realizar uma revolução burguesa democrática.
Dessas posições, a mais complexa e que teve maiores implicações teóricas e políticas foi aquela elaborada e personificada por Lenin. Partindo da análise da especificidade histórica russa, Lenin visualiza duas possibilidades básicas: a primeira, e que de certa forma já estava em processo, era a de uma via reacionária, de modernização conservadora conduzida pela autocracia czarista e apoiada por uma burguesia débil e "inconseqüente" — via extremamente desfavorável ao proletariado e aos camponeses, autoritária e excludente; a segunda alternativa seria a realização de uma revolução de caráter democrático-burguês, dirigida, a exemplo dos sans cullotes franceses, pelo povo ou pelo proletariado (protagonista principal) e pelo campesinato, já que a burguesia russa seria incapaz de conduzi-la por causa dos seus compromissos com a aristocracia.
Esta segunda possibilidade, ao bloquear o caminho asiático ou a via prussiana, não só permitiria o rápido desenvolvimento do capitalismo e a formação de um proletariado robusto, mas criaria condições bem mais favoráveis para suas lutas e organização e seria o caminho mais seguro para o socialismo. Para Lenin, a revolução democrático-burguesa e a socialista-proletária seriam vinculadas ou encadeadas (não permanente), em duas fases ou etapas distintas, e cada uma delas realizada de forma brusca e drástica (Lenin, 1980, p. 30).
As elaborações político-programáticas de Lenin seriam adaptadas pela Internacional Comunista aos países ou regiões da periferia capitalista. Como subproduto da teoria leniniana sobre a revolução democrático-burguesa e do imperialismo e desdobramento das discussões da IC ao longo da década de 20 (sobretudo do II e IV Congressos, de 1920 e 1922, respectivamente), em 1928, no VI Congresso, seriam estabelecidas de forma mais nítida as diretrizes político-revolucionárias do Komintern para os países classificados como coloniais, semicoloniais e dependentes.
Partindo do pressuposto de que, nestes países, a revolução não estava na sua etapa socialista (pois não havia condições objetivas para isso), as teses da IC alegavam que o processo revolucionário deveria ser realizado por etapas, sendo que a próxima seria a da revolução democrático-burguesa, antiimperialista e antifeudal. Assim, dizia-se que "a passagem à ditadura do proletariado não é possível nesses países em regra geral, senão através de uma série de etapas preparatórias, por todo um período de desenvolvimento da revolução democrático-burguesa em revolução socialista..." (Prado Jr., 1977, p. 53-5).
A etapa democrático-burguesa, ou nacional e democrática, serviria para eliminar os entraves ao desenvolvimento capitalista autônomo e à constituição do proletariado como classe. Os entraves fundamentais seriam constituídos pelo imperialismo e seus agentes internos (latifundiários e burguesia comercial e usuária). O imperialismo seria o principal sustentáculo do latifúndio e das relações semifeudais no campo, além de entravar o desenvolvimento das forças produtivas (apesar de em alguns desses países haver grandes inversões de capital industrial norte-americano e inglês), apropriar-se do excedente produzido na agricultura, descapitalizar o país através da remessa de lucros, entravar a expansão do mercado interno e, em conseqüência, dificultar a expansão da indústria nacional — situação que tornava estes países dependentes e submetidos à relações de dominação política e exploração econômica.
Dessa forma, seria necessário, nesta etapa da revolução, desenvolver as duas contradições básicas: entre a nação e o imperialismo e entre o desenvolvimento das forças produtivas e o monopólio da terra. Assim, a revolução estaria intimamente ligada à luta pela libertação nacional ou à luta antiimperialista e contra as sobreviências feudais. As tarefas desta etapa da revolução teriam que ser realizadas pela aliança operário-camponesa, com apoio da burguesia nacional e da pequena burguesia. A burguesia manufatureira ou industrial teria, objetivamente, interesses nacionais e autônomos e poderia, portanto, apoiar o movimento nacionalista. Porém, além de débil, sua postura tenderia a ser ambígua: ao mesmo tempo em que sofre a dominação e exploração do imperialismo, é a ele subordinada e dele dependente; por sua origem e condição, não se contrapõe aos latifundiários; e por sua fragilidade teme a participação popular em qualquer movimento e a revolução. Neste quadro, somente o proletariado, "educado" e dirigido pela sua vanguarda, o Partido Comunista, seria a força realmente conseqüente.
A noção ou compreensão da revolução referenciada no paradigma 1789 — como ruptura drástica e súbita, protagonizada por uma burguesia revolucionária aliada ao povo, que coloca abaixo as velhas instituições e relações sociais — impregnou profundamente o imaginário e a prática política do movimento socialista nos séculos XIX e XX. Todos os que analisaram, pensaram e teorizaram a questão tiveram no modelo francês um acontecimento recorrente e, com maior ou menor ênfase, se defrontaram com os fatos e atores daquela revolução.
2. Revolução como processo histórico
Se o referencial fundamental foi o paradigma 1789, uma outra noção ou compreensão das revoluções burguesas aparece embutida e permeia as análises. Uma compreensão não estrita — que reduz a revolução a um evento político "explosivo", de conquista do aparelho estatal, de ruptura radical com a antiga ordem —, mas as revoluções burguesas como um processo, mais ou menos longo, de construção do poder burguês no sentido lato e das relações sociais capitalistas. Um processo onde a burguesia, enquanto classe social fundamental, realiza suas tarefas históricas, moldando a sociedade à "sua imagem e semelhança", isto é, o processo histórico de instauração da sociedade burguesa que se funda e constitui no modo de produção capitalista — a burguesia (e/ou seus aliados) é levada a desempenhar este papel histórico no processo de formação e desenvolvimento das forças produtivas e das relações capitalistas de produção. Isto não significa que ela (burguesia) passa ou não a ter consciência, ou ainda, ter uma compreensão incompleta de sua atuação histórica. Naturalmente, isso implica também, que nesse processo ela se associa e se antagoniza com outras classes e camadas sociais e com os interesses destas (no caso, a aristrocracia, pequena burguesia, proletariado, campesinato). Há casos, inclusive, em que a revolução burguesa se processou sem que, necessariamente, a burguesia se apresentasse como sujeito direto e fundamental na construção da sociedade e do Estado capitalista.
Este processo é caraterizado por abranger um largo período histórico, cuja gênese na Europa pode ser encontrada por volta dos séculos XIII/XIV com o início da desagregação feudal e se estende, na Inglaterra até pelo menos o século XVIII, na França até o século XIX e em outros países até o século XX. Envolveu o ressurgimento do comércio, a constituição de burgos e/ou cidades, a intensificação da circulação monetária, novas relações de produção, acumulação primitiva de capital, organização de Estados nacionais, nascimento de novas classes sociais, mudanças culturais e religiosas, etc. Das guildas feudais, passando pela manufatura até chegar à grande indústria, das rotas de comércio medievais aos mercados da África, Índia e China e à colonização da América há um longo processo de transformações que desembocaria na constituição do modo de produção capitalista e na formação da burguesia como classe dominante. "Vemos, portanto, como a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e troca" (Marx e Engels, 1977, p. 86). No decorrer desta história, cada "etapa do desenvolvimento da burguesia foi acompanhada por um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna; aqui, República urbana independente (como na Itália e Alemanha), ali, terceiro estado, tributário da monarquia (como na França); depois, no período manufatureiro, servindo à monarquia semifeudal ou absoluta como contrapeso da nobreza e, de fato, como pedra angular das grandes monarquias em geral, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou finalmente a soberania exclusiva no Estado representativo moderno" (Id., p. 86).
Junto e imbricado a esse processo dá-se a constituição dos Estados nacionais, criando novas condições de organização do poder e direção política, para o desenvolvimento das forças produtivas e das relações capitalistas de produção. Apesar da diversidade com que ocorre nas diversas regiões ou localidades, a organização dos Estados nacionais tem algumas características essenciais comuns, implicando: na centralização do poder; na unificação da justiça, na moeda, nos pesos e medidas; na uniformização da língua; na criação de um exército único e permanente; na estruturação administrativa e fiscal; na subordinação dos interesses locais e regionais ao poder central; na supressão das barreiras feudais, criando condições para a formação de um mercado interno onde as mercadorias pudessem circular livremente; e outras. Dessa forma, a "burguesia suprime cada vez mais a dispersão da população, dos meios de produção e da propriedade. Aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A conseqüência necessária disso foi a centralização política. Províncias independentes, ligadas apenas por débeis laços federativos, com interesses, leis, governos e tarifas diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo, um só código de leis, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária" (Marx e Engels, 1977, p. 88).
Em consonância com este mesmo processo, e nele encadeado, há o desenvolvimento da cidadania, o surgimento da sociedade civil e dos princípios da propriedade, da liberdade formal e da igualdade jurídica, etc. Estes institutos e princípios vão se constituir em suportes estruturais básicos para a montagem dos mecanismos de dominação burguesa e da acumulação e reprodução do capital, de forma que: "As relações econômicas passam a organizar-se com base nos princípios da liberdade, igualdade e propriedade; isto é, liberdade e igualdade de proprietários de mercadorias. Esse é o reino do contrato, do direito burguês, que implica uma universalização abstrata, por meio da qual se apagam as desigualdades e contradições. Aí reinam a liberdade, igualdade, propriedade e contrato, que garantem a economia política da sociedade burguesa" (Ianni, 1986, p. 10).
Portanto, a revolução burguesa é um processo temporal de longa duração que abarca, até sua irrupção e o desmoronamento da antiga sociedade, um largo período histórico de lutas de classes. Envolve grandes transformações socioeconômicas, políticas e culturais, e é marcada por uma série de rupturas, movimentos e acontecimentos fundamentais e singulares. A própria emergência e desenvolvimento do capitalismo requer e implica, necessariamente, a revolução burguesa. A constituição do modo de produção capitalista e a revolução burguesa são indissociáveis, andam juntas e são a mesma história.
A delimitação cronológica ou temporal do processo da revolução burguesa não é facilmente precisável, como observou um sociólogo: "A revolução burguesa denota um conjunto de transformações econômicas, tecnológicas, sociais, psicoculturais e políticas que só se realizam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua evolução industrial. Há, porém, um ponto de partida e um ponto de chegada, e é extremamente difícil localizar o momento em que essa revolução alcança um patamar histórico irreversível, de plena maturidade e, ao mesmo tempo, de consolidação do poder burguês e da dominação burguesa" (Fernandes, 1976, p. 203).
Grosso modo, pode-se dizer que o processo das revoluções burguesas, em geral, comporta fases distintas e acontecimentos ou episódios cruciais. Diversos são os autores que procuraram demarcar a extensão deste processo. Antonio Gramsci afirma que a revolução francesa abarca "toda uma época histórica" e só se consolida em 1870, abrangendo um período de mais de 80 anos (1976, p. 47). Engels, em 1874, analisando o processo da revolução burguesa na Alemanha, conclui: "Foi assim então que o estranho destino da Prússia quis que ela atingisse, em fins do século XIX, sob a forma agradável do bonapartismo, sua revolução burguesa começada em 1803-1813 e que deu outro passo adiante em 1848. E se tudo for bem, se o mundo permanecer sereno e tranqüilo, quando todos nós já formos muito velhos, poderemos talvez ver, em 1900, o governo da Prússia atingir enfim o ponto em que se encontrava a França em 1792" (1977, p. 17).
Lenin sugere que a revolução burguesa na Rússia desencadeia-se em 1861, quando o Estado czarista começou a implementar uma série de reformas, entre as quais o Estatuto de Libertação dos Servos, e que até 1905 ainda não havia encontrado um desenvolvimento amplo (1968, p. 56). É ainda Gramsci quem explica o processo da revolução burguesa na Itália como tendo dado os primeiros passos em 1848, definido seu curso durante o Risorgimento e se estendido até o começo do século XX (1971). Estes e outros teóricos (K. Marx, G. Lukács, etc) dão indicações claras de que as revoluções burguesas abrangem um período histórico de largo prazo.
Importa assinalar que o processo da revolução burguesa desencadeia-se, desenvolve-se e realiza-se de formas particulares nas diversas regiões do mundo. Em cada local assume uma modalidade específica e historicamente determinada. Não obstante as determinações e caracteres gerais e comuns a todos os países, a revolução burguesa realiza-se em cada região como um processo particular. Marx, em 1875, observou que "a 'sociedade atual' é a sociedade capitalista que existe em todos os países civilizados, mais ou menos expurgada de elementos medievais, mais ou menos modificada pela evolução histórica particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. O 'Estado atual', pelo contrário, muda com a fronteira. É diferente no Império prusso-alemão e na Suíça, na Inglaterra e nos Estados Unidos [...]. No entanto, os diversos Estados nos diversos países civilizados, não obstante a múltipla diversidade das suas formas, têm todos em comum o fato de que assentam no terreno da sociedade burguesa moderna, mais ou menos desenvolvida do ponto de vista capitalista. É o que faz com que certos caracteres essenciais lhes sejam comuns" (Marx e Engels, 1974, p. 29). A particularidade de cada processo de realização da revolução burguesa depende de fatores múltiplos, e é por eles condicionada; entre eles, a realidade histórica dada e/ou legada, a intervenção dos agentes coletivos (classes ou frações de classes) e outros.
Muitos foram os analistas que detectaram e explicitaram as particularidades das várias vias ou situações particulares dos processos da revolução burguesa nos diversos países. Na Inglaterra a revolução que eclode no século XVII, apesar de desimpedir o caminho para o desenvolvimento capitalista, resultou numa solução de compromisso entre a burguesia e a aristocracia; já na França encontramos o caso clássico de uma revolução democrático-burguesa, em que a participação popular imprime um caráter mais radical ao processo; nos Estados Unidos, desencadeia-se a partir do rompimento do estatuto colonial e com a organização do Estado nacional, com traços fortemente liberais.
Há também os casos das revoluções "atrasadas" (Alemanha e Itália, por exemplo), que se desencadeiam num momento em que outras, praticamente, já se haviam realizado — e se desencadeiam pela via da conciliação com os restos feudais. Na Alemanha, reveste-se de um caráter todo especial, que já havia sido apontado por Marx e Engels e que Lenin chamou de "via prussiana" — uma revolução realizada de "cima para baixo", conciliando interesses da aristocracia agrária junker com os da burguesia, resultando numa "modernização conservadora"; na Itália, desencadeia-se com o Risorgimento ("unificação italiana") através de um processo que Gramsci denominou de "revolução passiva" ou "revolução sem revolução", por meio de mudanças moleculares ou do transformismo, que afastam as massas populares e promovem a conciliação de interesses entre a burguesia e a aristocracia fundiária.
As diferentes formas de realização das revoluções burguesas deixaram um legado sociopolítico e uma série de normas e institutos sobre os quais se assentam a maioria dos Estados nacionais contemporâneos — e resultaram em determinadas e variadas formas de organização do Estado e da nação, da economia e da sociedade civil, da cultura política, da cidadania e da democracia.
3. A revolução burguesa no Brasil
O tema ou a problemática da revolução burguesa foi intensa e extensamente discutida pela intelligentsia brasileira desde a década de vinte. Inúmeros foram os intelectuais que se debateram e se preocuparam em analisar a revolução burguesa no Brasil ou a "revolução brasileira", como foi por alguns denominada. Objeto de intermináveis polêmicas, foi abordada pelos mais diversos ângulos, métodos e concepções; mas todos com a mesma preocupação: interpretar e intervir no processo histórico em curso. Introduzida pelo PCB na década de vinte como projeto político a ser perseguido, e referenciada nas formulações de Lenin e da Internacional Comunista de uma revolução democrático-burguesa, antiimperialista e antilatifundiária, a questão ganharia vulto nas décadas seguintes. A discussão envolveu diferentes compreensões quanto ao tempo histórico, os rumos e particularidades, os protagonistas ou as forças sociais dirigentes, o legado político-cultural, etc.
Sérgio Buarque de Hollanda (1978), escrevendo nos anos trinta, afirma que a nossa revolução (burguesa) foi um processo vagaroso, brando, controlado, que se desencadeia com a substituição da escravidão pelo trabalho livre e com a implantação da República: "Existe um elo secreto estabelecendo entre esses dois acontecimentos e numerosos outros uma revolução lenta, mas segura e concertada, a única que, rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional. Processa-se, é certo, sem o grande alarde de algumas convulsões de superfície [...]. A grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de século. Seus pontos culminantes associam-se como acidentes diversos de um mesmo sistema orográfico [...]. A forma visível dessa revolução não será, talvez, a das convulsões catastróficas, que procuraram transformar de um mortal golpe, e segundo preceitos de antemão formulados, os valores longamente estabelecidos. É possível que algumas das suas fases culminantes já tenham sido ultrapassadas, sem que possamos avaliar desde já sua importância transcendente. Estaríamos vivendo assim entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz" (p. 126, 127 e 135). Observa também que "os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo..." e que a "democracia... foi sempre um lamentável mal-entendido", importada pela "aristocracia rural e semifeudal" que acomodou-a "aos seus direitos e privilégios" (p. 119).
Nelson Werneck Sodré (1990), numa outra linha interpretativa, assinala que a revolução burguesa no Brasil é ainda um processo inconcluso, "desprovida de lances espetaculares". Um processo com várias "etapas", que se inicia no fim do século XIX, acelera-se com o "movimento de 1930", e segue seu curso nos anos cinqüenta e, com avanços e recuos, desemboca na ditadura militar do pós-64. "Tal processo se assemelha mais aos movimentos de uma roda quadrada, que vai se tornando redonda na medida em que rola, primeiro aos tombos, abalando as estruturas, depois mais suavemente. Nossa revolução burguesa não tornou ainda redonda essa roda gigantesca [...]. Vamos, então, pelos trancos e barrancos de uma revolução burguesa que se desenvolve por patamares, sacudida de crises e acompanhada pelo imperialismo, que intervém no processo a cada passo". Uma revolução burguesa que reproduz as condições do prussianismo, condicionada pela dependência ao imperialismo e limitada pelo latifúndio e pela sobrevivência das relações pré-capitalistas — situação que "gera uma burguesia tímida, que prefere transigir a lutar, débil e por isso tímida, que não ousa apoiar-se nas forças populares senão episodicamente, que sente a pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois receia mais a pressão proletária". Burguesia que constantemente se vale de recursos "para assegurar a via prussiana e a exploração cômoda e pacífica da força de trabalho..." (p. 30-31 e 114-5).
Seguindo uma tradição histórico-teórica próxima a de N. W. Sodré, Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna procuraram explicar a revolução burguesa no Brasil utilizando-se das noções ou categorias de "via prussiana" (de Lenin e Lukács) e de "revolução passiva" (de Gramsci).
Utilizando-se do conceito "ampliado" (por G. Lukács) de via prussiana, Carlos Nelson Coutinho analisa a revolução burguesa no Brasil, também como um longo processo de feições antidemocráticas, resumindo suas características básicas: "as transformações ocorridas em nossa história não resultaram de autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população; mas se encaminharam sempre através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, conciliação que se expressava sob a figura política de reformas 'pelo alto' [...]. Mas, generalizando o conceito, pode-se dizer que — na base de uma solução prussiana global para a questão da transição ao capitalismo — todas as grandes alternativas concretas vividas pelo nosso país, direta ou indiretamente ligadas àquela transição (Independência, Abolição, República, modificação do bloco de poder em 30 e 37, passagem para um novo patamar de acumulação em 64, encontraram uma resposta 'à prussiana', uma resposta na qual a conciliação 'pelo ato' não escondeu jamais a intenção explícita de manter marginalizadas ou reprimidas — de qualquer modo, fora do âmbito das decisões — as classes e camadas sociais 'de baixo'" (1980, p. 71).
Como complemento ao conceito de "via prussiana", utiliza-se do conceito de "revolução passiva", como "critério de interpretação" da formação social brasileira, caso muito próximo daquele observado por Gramsci na Itália do Risorgimento: "por um lado, o fortalecimento do Estado em detrimento da sociedade civil, ou, mais concretamente, o predomínio das formas ditatoriais da supremacia em detrimento das formas hegemônicas; e, por outro, a prática do transformismo como modalidade de desenvolvimento histórico que implica a exclusão das massas populares" (1992, p. 125).
Luiz Werneck Vianna (1976) recorre às categorias de via prussiana e via americana de Lenin para explicar o processo de modernização conservadora da revolução burguesa no Brasil. O processo, em curso desde o século XIX, generaliza-se pela "via prussiana" com a crise da ordem oligárquica e a passagem para o capital industrial — o Estado, autonomizado das classes e dirigido pelas "elites prussianizadas", faz avançar um projeto modernizador e de industrialização, com fortes traços corporativos; preserva-se, porém, a estrutura agrária atrasada e elementos do antigo sistema político. É um prussianismo que asume também feições de uma revolução passiva, de um transformismo sem revolução, através de "transformações moleculares" controladas e dirigidas pelo Estado. Dotado de autonomia diante da sociedade civil, o Estado faz valer seus objetivos: controle e dominação das forças sociais — o Estado será o principal ator dessa "revolução sem revolução", da revolução passiva (1997).
Numa terceira vertente, temos a obra de Florestan Fernandes (1976), que analisa a revolução burguesa no Brasil, também, como um processo histórico de largo prazo: da Independência à ditadura militar implantada em 1964. Um processo de "emergência e consolidação do capitalismo", de "desagregação do regime escravocrata-senhorial e da formação da sociedade de classes" (p. 20); mas de um "capitalismo dependente", e sob ele a "revolução burguesa é difícil", deixando "poucas alternativas às burguesias" e "a redução do campo de atuação histórica da burguesia exprime uma realidade específica, a partir da qual a dominação burguesa aparece como conexão histórica não da 'revolução nacional e democrática', mas do capitalismo dependente e do tipo de transformação capitalista que ele supõe" (p. 214) — em síntese, uma revolução burguesa retardatária, que se apresente muitas vezes como contra-revolução, de caráter autoritário e autocrático.
Octavio Ianni, ao analisar o "ciclo da revolução burguesa no Brasil", enfatiza as diferentes formas históricas assumidas pelo Estado (imperial, republicano, oligárquico, populista, ditatorial): "Todas as formas históricas do Estado, desde a Independência até o presente, denotam a continuidade e a reiteração das soluções autoritárias, de cima para baixo, pelo alto, organizando o Estado segundo os interesses oligárquicos, burgueses, imperialistas. O que se revela, ao longo da história, é o desenvolvimento de uma espécie de contra-revolução burguesa permanente" (1984, p. 11).
Nesta breve resenha de compreensões díspares e de análises realizadas por intelectuais de variadas concepções e orientações teórico-históricas, todas elas apontam algumas características essenciais comuns da revolução burguesa no Brasil: foi um processo longo e difícil, que se inicia ou desencadeia-se em fins do século XIX e ganha impulso a partir da década de trinta; tem traços marcadamente excludentes e autoritários.
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José Antonio Segatto é professor da Unesp/Araraquara.
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